Você
lembra da sua própria infância? Você brincava de quê? Brincava na rua? Brincava
com quem? Quais as suas brincadeiras favoritas? Continuando a série de
perguntas: será que nossa cultura atual é menos amigável à natureza infantil?
Será que hoje as crianças têm menos chances de brincar? Para tentar responder a
tantas pergunta de pais e mães, a Academia Americana de Pediatria divulgou um
documento oficial, em agosto, deste ano, intitulado "O
poder da brincadeira: o papel pediátrico do lúdico no desenvolvimento das
crianças pequenas".
O
documento caracteriza a brincadeira como intrinsecamente motivadora, envolvendo
engajamento ativo e resultando em “descobertas alegres” na infância, reúne
pesquisas de desenvolvimento e neurológicas extensivas sobre brincadeiras e
tenta extrair algumas das descobertas específicas de desenvolvimento dos jogos
repetitivos que fornecem “a alegria de poder prever o que vai acontecer”, além
do controle dos impulsos. O documento recomenda fortemente que os pediatras
encorajem o aprendizado lúdico de pais e bebês. A "prescrição para brincar"
deve ser feita, em todas as consultas de crianças saudáveis, nos dois
primeiros anos de vida.
“O
documento é uma verdadeira declaração de valores porque muitos dos
especialistas que estudam a importância do brincar sentem-se sitiados, mesmo
quando novas pesquisas enfatizam sua importância no desenvolvimento infantil.
Brincar está sendo visto como algo irrelevante e antiquado, hoje”, afirma o
pediatra e homeopata Moises Chencinski (CRM-SP 36.349).
Vivemos
em um clima onde os pais sentem que precisam programar cada minuto do tempo de
seus filhos. Cerca de 30% dos jardins de infância, nos EUA, não têm mais
recesso escolar. Existe um velho ditado que diz que brincar é trabalho de
crianças. E é mesmo! “Brincar é um dos jeitos que elas aprendem e o modo
como elas se desenvolvem. É importante entender como todos nós, pediatras, e
especialmente os pais, podemos encorajar a brincadeira”, observa Chencinski.
De
acordo com a declaração americana, as crianças desenvolvem as habilidades
necessárias para viver no século XXI por meio das brincadeiras. São habilidades
sociais e emocionais, que os ajudam a colaborar e inovar, que são cruciais para
o mundo do trabalho na nova economia global.
Trabalho
de pediatra, sim!
Uma
meta fundamental na atenção primária pediátrica é fortalecer o relacionamento
entre pais e filhos. E o brincar também é importante nessa área. Mesmo uma
criança muito pequena se beneficia da prática. Quando uma criança de 3 meses
sorri e um dos pais sorri de volta, esse tipo de atividades não é trivial. Esse
ato é realmente importante para o desenvolvimento da linguagem e das
habilidades emocionais infantis, como a capacidade de se revezar.
Relações
estáveis com os pais e outros cuidadores que são construídas por meio dessas
interações também são importantes para ajudar as crianças a lidarem com o
estresse e o trauma e evitar o que os pediatras americanos chamam, no
documento, de “estresse tóxico”.
O
documento entra em detalhes de pesquisas recentes que mostram que a brincadeira
pode afetar o cérebro em desenvolvimento, tanto em sua estrutura básica, quanto
em sua função, com mudanças que podem ser encontradas, tanto no nível molecular
e celular, bem como no nível de comportamento e de função executiva.
“Há um
verdadeiro papel pediátrico em apontar a real importância de brincar em muitos
níveis. Os pais perguntam aos pediatras: o que eu faço com o meu filho? Quantas
atividades ele deve fazer? Estou muito empolgado com o fato de endossar a ideia
de receitar a brincadeira”, diz o médico.
O documento
não trata de brincadeiras elaboradas. Ele aborda o brincar com utensílios
domésticos comuns que as crianças podem descobrir e explorar, como colocar
colheres e recipientes de plástico no chão e bater, para ver o que a criança
faz com eles.
O objetivo
não é fazer com que os pais se sintam culpados ou torná-los especialistas em
brincadeiras, mas sim orientá-los, durante as consultas, para que eles possam
contribuir ludicamente com o desenvolvimento da criança – o que é um imperativo
básico da atenção primária em Pediatria.
E há
maneiras de trabalhar esse conceito durante a consulta médica: soprar bolhas de
sabão para ajudar crianças com medo a se sentirem mais à vontade ou usar
fantoches para demonstrar o que vai acontecer em um exame, por exemplo. Pode
ajudar levar a família para a sala de espera e ver o que a criança faz com os
brinquedos por lá.
“A
declaração defende um currículo equilibrado no jardim de infância que não
ignore o aprendizado divertido e não considere o tempo gasto em brincadeiras,
recreios e férias, como tempo perdido. A aprendizagem lúdica significa apoiar a
motivação intrínseca das crianças pequenas para aprender e descobrir, em vez de
impor motivações extrínsecas, como as pontuações dos testes”, diz o médico.
O
que os pais precisam fazer?
Dar aos
pais um reforço positivo para o que eles já estão fazendo é o que mais ajuda,
não os criticando pelo que eles não estão fazendo. “Passei muito tempo pensando
em como poderíamos incentivar os pais a lerem para os filhos como parte da consulta
de atenção primária. Escrevi sobre a importância dessa prescrição.
Mas podemos, com sucesso, ‘prescrever a leitura e a brincadeira’,
essenciais para uma infância saudável, quando os pais são tão ocupados?. Sim!”,
defende o pediatra.
Há
temas subjacentes cruciais que conectam todas essas ideias: a importância de
interagir com as crianças, respondendo às suas sugestões e perguntas, o valor
do “antiquado cara-a-cara” com os pais e com os cuidadores e a importância de
ajudar as crianças a encontrarem uma variedade de experiências, que não são
todas sobre telas, em um mundo que é cada vez mais virtual para pais e filhos.
“Uma
‘receita para brincar’ que eu poderia prescrever aos pais, no final de uma
consulta, é apenas dizer: confie em seu senso comum. Como você pode
compartilhar um pouco de alegria com seu filho enquanto ele está explorando o
mundo? O objetivo não é realmente validar o que eu acho, mas liberar os
pais que estão se sentindo pressionados por uma cultura que diz não à
brincadeira, uma cultura que diz que as crianças precisam ter videogames
especiais, um iPad, ou ainda, precisam ter cada minuto de tempo estruturado
para ‘vencer na vida’”, explica o pediatra Moises Chencinski.
“O
brincar é a parte mais importante da infância. É como as crianças se desenvolvem
emocionalmente e cognitivamente. É como aprendem a falar! A declaração
americana vem para ajudar os pediatras e os pais a entenderem a importância
desse ato”, acredita o médico.